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  • Sexta-feira, 11 de março de 2005

    Só pra passar tempo

    Dionísio olha pra o açougue. É tudo que resta do seu pai, e agora nem isso sobreviveu ao tempo. Queria ter feito mais, talvez se modernizado, ter feito do local uma “boutique de carnes”, como viu em Higienópolis certa vez. Mas sabe-se lá, talvez Dionísio quis manter do jeito que recebeu para lembrar do pai; não dependia do açougue para viver, então não se esforçara para mudar. Começou a fechar a porta do vazio estabelecimento pela última vez.

    Antes de terminar de fechar, do outro lado da rua, seus olhos seguem Mara empurrando o carrinho rua abaixo. Ela gostaria de saber quando o marido providenciaria aquela au pair que prometeu desde que ela concordara em engravidar. Ela casou-se para ter uma vida de princesa, não para acordar dezenas de vezes na madrugada, limpar cocô, xixi e vômito verde.

    Na pressa, Mara quase passa por cima de Tonico, que precisava bolar um texto bacana para o anúncio do banco. Uma chuva de chavões (além de rimas e aliterações) corria em sua cabeça, desde idéias bestas como “poupe-se de preocupações, poupe no Banco Patrimonial” até lampejos interrompidos por mulheres correndo com carrinhos de bebê e por gente como o maconheiro do outro lado da rua.

    Toninho viu Mariano fumando, completamente exposto. Mariano cagava e andava pro mundo, sentado na calçada e viajando. A última coisa que viu antes do policial lhe dar o primeiro safanão foi o moleque com cara de tarado no ponto de ônibus.

    Juliano avaliava, olhos famintos, pensando “essa eu comia fácil, essa até dá caldo, essa nem fodendo, CACETE!!! COMIA COM GOSTO!!!, essa é feia mas a bunda é boa”, e por aí vai. Uma adolescência de hormônios queimava dentro dele, moleque espinhento que quase comprova a crença popular sobre meninos de 15 anos e os banheiros de suas casas.

    A feia de bunda boa subia a rua, sem pensar nada que valesse a pena escrever, sacolejando o espaçoso porta-malas na porta do boteco onde Firmino tomava o terceiro goró do dia. Pensava no dia anterior, o dia cinzento em que recebeu o bilhete azul e ficou roxo de raiva e depois vermelho de vergonha quando voltou a si. Tome mais uma amarelinha para esquecer. Tonto como estava, quase confundiu o menino que subia a rua, passando correndo na porta do boteco, com algum parente: tinha os mesmos traços. Não estava bêbado o suficiente para falar com o moleque, e virou para pedir mais uma.

    O moleque um dia teve nome, mas não lembra mais. Usa o nome de guerra que o coxinha da PM lhe deu: Meia Perna. Arrastando a dita cuja rua acima, não sabe quem é seu pai ou sua mãe. Mas tem um cano. 38. Abraçava-o contra o corpo, por baixo da roupa, sentindo o frio do revólver ainda virgem.

    Para chegar aqui, passou pela maluca com o carrinho de bebê, que descia a rua e atravessou a rua só para não cruzar com Meia Perna. Cruzou com o tio completamente distraído, pensando na vida (e em slogans, mas Meia Perna não sabia disso), pedindo para ser assaltado; só não foi porque Meia Perna viu o gambé dando porrada num noinha. Apertou o passo para não ser notado e viu um velho chapado de cana querendo falar com ele. Desviou, não tinha tempo para perder, era hora de roubar o coroa que tem o açougue lá na esquina. Ia limpar o caixa, levar umas carnes pra cambada lá da Sé, fazendo um churrasco debaixo da ponte para comemorar. E se o folgado se metesse a besta, ia levar chumbo. Meia Perna viu a bunduda lá na frente, entrando no açougue. Diminuiu o passo para dar tempo dela sair. Se não saísse antes dele chegar e se metesse a besta também...

    Rosângela, agora sim pensando algo que valha a pena escrever, chegou na porta do açougue; ia convidar Dionísio para jantar. Acha que demorou demais para fazer um movimento para cima dele, mas pensou: “dane-se, é ele que eu quero”, e foi lá. Dionísio topou, terminou de fechar a porta e saiu de mãos dadas com Rosângela, atravessando a rua até o prédio onde ela mora.

    Se Rosângela soubesse que era só convidar, tinha tomado coragem uns anos antes.

    Meia Perna botou a culpa na porra da perna que não o deixou chegar no açougue a tempo.

    Firmino desistiu de falar com o moleque e pediu mais uma; mas que ele era a sua cara, isso era.

    Juliano botou a pasta da escola na frente das calças, para esconder o volume, e continuou secando o mulheril.

    O PM enfim cansou de dar safanões em Mariano e o levou para a viatura.

    Toninho não bolou nada para o Banco Patrimonial, e ainda foi atropelado por um motoboy ao atravessar a rua distraído. Mas passa bem.

    Mara chegou em casa, xingou o marido pelo telefone e foi trocar o bebê de novo.

    Dionísio longe do pai e do açougue, respirou fundo e começou a viver.

    E é isso.

    Sexta-feira, 04 de março de 2005


    Do outro lado do jardim

    A rosa estava no jardim com suas companheiras flores, vivendo suas vidas de planta. Um dia, a Rosa decidiu que não queria mais viver no jardim. O problema é que o jardim pertencia a um prédio, e uma grade de ferro separava as rosas da liberdade. As rosas diziam para a Rosa:

    "Mas o que você vai fazer lá fora? Você nem sabe o que tem lá fora!!!"

    "Lá fora eu vou ser livre, você vai ver. Muito melhor lá fora do que presa aqui... o sol é estranho, a luz vem toda listrada, no meio dessas barras. Eu quero viver livre!!"

    E a idéia foi tomando conta dos pensamentos da Rosa. Um dia, ela teve uma idéia. Iria absorver o máximo de luz do sol e água e se esforçaria muito para fazer o seu cabo crescer para então atravessar as grades. A cada dia em que o jardineiro ou o zelador apareciam, ela ficava em perfeita concentração. Enquanto suas amigas flores aproveitavam o alívio de receber água ou luz, ela pensava grande.

    Do outro lado da rua, Mauro estava estático na cama. A família virou a cama de frente para a janela, para que Mauro pudesse pelo menos ver a rua e não se sentir tão entediado. Por mais que tentasse se livrar da família, mais preso a ela ficava. Sofreu o acidente numa das várias madrugadas em que ficava longe de casa. Ainda doía, o gesso não o deixava se movimentar, e coçava muito.

    Talvez pelo desejo de deixar a casa dos pais (que segundo o próprio Mauro, não o entendiam), Mauro simpatizou com a rosa. Percebeu que a cada dia, ela crescia mais e mais, chegando perto da grade do prédio da frente. Mauro percebeu a intenção da rosa, de se libertar das grades, e começou a torcer por ela. Pensou várias vezes em pedir para alguém de sua casa ir lá e trazer a rosa para ele, mas achava que, como ele, ela deveria abandonar sua vidinha chata por si só.

    E enquanto isso, a Rosa lutava bravamente, cada dia um pouco mais perto do jardim. O jardineiro e o zelador não ligavam para a evolução da pequena flor, que quase já não ouvia as colegas, de tão alto e para a frente que estava. Depois de alguns dias, alcançou a grade, tocando-a.

    Mauro, que a essa altura já estava usando binóculos para acompanhar diariamente a evolução da rosa, ficou feliz por ela finalmente ter alcançado a grade. Começara a fisioterapia, e ainda não podia ficar fora da cama mais do que algumas poucas horas por dia. Ocupava o tempo observando a Rosa. Ela seria livre, como ele. Mauro pensava em sair de casa assim que se recuperasse, ele precisava e merecia essa liberdade.

    Mais uma semana, e a Rosa finalmente atravessara a grade, nem tanto pelo crescimento, e sim mais pelo peso dela, que a empurrou para a frente. Ela ficou tão feliz que gritava para as colegas (que estavam láááááá embaixo):

    "Consegui, consegui!!!! Sou livre!!!"

    Mauro ficou muito feliz com o que vira. A Rosa, com sua cabeça para fora da grade. Parecia um sinal!!! Mais uma semana de fisioterapia e já estaria bom para se mandar de casa, fugir para o mundo.

    As outras flores, entretanto, um tanto preocupadas, perguntavam:

    "E agora, para onde você vai?"

    "Ah, primeiro vou atravessar a rua, ver como é o outro lado"

    E a Rosa se esforçou. Fez uma força incrível para sair pelo meio das grades, mas não conseguia. Estava se desagastando, usando toda a energia que a água e o sol haviam lhe dado, e nada. Quando perguntada pelas outras flores o que tinha acontecido, respondia:

    "É essa raiz!!! Ela não me deixa ir pra lugar nenhum!!!!"

    As flores, preocupadas, davam 1000 sugestões, nenhuma que servisse. E Mauro, em seu quarto, olhava e pensava: "e agora, para onde ela vai?"

    Um dia, o jardineiro apareceu no prédio, e a Rosa ouviu algo do tipo "pode cortar, já está fora do prédio, a síndica reclamou". E a Rosa entendeu a mensagem: ela seria livre!!! O jardineiro a livraria daquela incômoda raiz, e ela conheceria o mundo!!! O Jardineiro cortou a Rosa, e ela despencou no chão. Mauro, olhando tudo aquilo, se perguntava "e agora? O que ela vai fazer?".

    Quando pensou em ir buscar a Rosa do outro lado da rua, um senhor gordo, suado, sem se preocupar com o que estava no chão, pisou em cheio na flor, que estava caída, sem poder ir para lugar nenhum. As flores choraram muito, gastaram muita energia com a tristeza, e Mauro apenas olhou, um olhar perdido, cheio de pontos de interrogação. Dias depois, passando em frente ao prédio, Mauro ouviu o zelador dizer que as flores do jardim iriam para a fazenda da síndica, que colocaria novas no lugar.

    Mauro pensou nas raízes, na fuga, no corte e na morte, e decidiu fazer as pazes com a família e ficar em casa. Descobriu naqueles dias que é melhor mudar através do amor do que através da dor, e nunca largou de suas raízes, não importa onde elas estivessem.