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  • Sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

    Drive-in

    “Quero que você me trate como seu funcionário; só não limpo esperma dos outros.”

    “Não limpa o quê?”

    “Esperma.”

    Nada. O olhar vago do funcionário do drive-in mostrava com que tipo de pessoa eu estava tratando; bom, tudo em nome do meu texto. Não queria e não podia voltar atrás. Essa era a audácia que meu editor dizia que estava faltando nos meus trabalhos recentes. “Você sabe...esperma” – apontei para o zíper da calça, constrangido como uma menina de cinco anos.

    “Ah, o senhor não quer limpar porra, é isso?”

    “Ahm...isso. Não quero. De resto, sou seu funcionário, quero saber as situações pelas quais um funcionário passa aqui”.

    “Fechado, doutor. Agora, você prometeu...” – o sinal do dedão esfregando no dedo médio e no indicador dizia o que ele tinha vergonha de tratar com a boca suja.

    “Tá aqui, 50 reais. Mas não me chame de senhor. Nem tenho diploma de médico ou advogado para ser doutor. Sou um escritor, mas para você sou um funcionário.”

    “Valeu, grande. Pode começar então.”

    Estava frio; começo de maio, a temperatura baixa durante o dia, e à noite caindo para uns bons 15 graus. Não imaginava no que iria me meter então. Estudei um pouco sobre drive-ins antes de tentar essa experiência, mas o estudo não rendeu muito; no máximo uma ou duas letras de Arrigo Barnabé e uma série de estórias colhidas em diversos blogs por aí.

    “Olha lá, Zé! Tá chegando carro!!!”

    ‘Zé’???? Bom, como ele olhava para mim, só podia ser eu; ele se acostumou rápido a não me chamar de ‘senhor’ ou ‘doutor’. Acordei da divagação, um carro entrando na cabine. Fui até lá, como um funcionário qualquer do drive-in, e fechei a cortina. Era bom acontecer algo de diferente hoje aqui, porque se eu passar a noite fechando cortina para os outros transarem, vou enlouquecer.

    De volta ao meu posto, entre gemidos e gritos, o sono batia forte. Lá pelas 2 da manhã, o lugar começou a encher. Era homem com homem, mulher com mulher, homem com duas mulheres...até que aconteceu. O carro com três homens até não era anormal, depois de tudo que tinha visto até aquela hora. O problema eram as armas. Antes de eu raciocinar, ouvi o manjado grito:

    “Mãos ao alto, e passa o dinheiro”

    Quando percebi, fulano põe um 38 na minha cara. Não sei quantas vezes escrevi cenas de assalto nos livros, mas viver era diferente. Suei frio na hora, incapaz de dizer algo, simplesmente obedeci ao comando e fui para os fundos, onde ajudaria um dos assaltantes a fazer um “arrastão” nas cabines.

    Só digo isso: se já era ruim ver as pessoas que entravam, ver o que elas faziam era pior. Garanto que depois do que vi ficarei um bom tempo sem comer banana, calda de chocolate. Sem contar que toda vez que for no banheiro, vou lembrar do que a cabine 30 estava fazendo...argh.

    O sexo traz o melhor e o pior das pessoas. Elas se julgam seguras cercadas por paredes, e só recuperam o julgamento próprio quando alguém toma iniciativa de abrir a cortina antes da devida permissão. As caras eram do mais profundo terror, não pelo assalto, mas pelo flagrante. Como se explicar para alguém que te vê recebendo um pepino da própria esposa, ao som de “Here Comes The Sun”, dos Beatles?

    Eram tantos pensamentos e análises que até consegui superar o terror do momento. Só pensava em escrever no meu bloco as idéias que surgiam, mas nem botei a mão no bolso. Se o fulano pensasse que era uma arma, já era, fosse eu assalariado ou burguês. Até que o grito me tirou do transe:

    “Pisei nessa merda!!!!”

    “O senhor pisou no esperma?” – perguntei, tentando parecer o mais calmo possível.

    “Que esperma o caralho!!! Não ta vendo que pisei na porra?”

    “Ah sim, eu vi”

    “Limpa então” – fulano ofereceu o pé para mim.

    “Você quer que eu limpe a...”

    “Já!!!!!!!!!”

    Lá estava eu, 42 anos, roteirista de seriados famosos, limpando esperma do pé de um assaltante em um drive-in. Pensei em 300 temas melhores de se trabalhar do que esse; por que minha imaginação sempre me leva pros piores lugares? Não podia uma vez ter a inspiração de escrever um livro ambientado em transatlânticos de luxo?

    Passado o assalto, o dia amanhecia. A polícia chegou rapidamente (3 horas depois do assalto, um recorde); cuidaram de me desamarrar, o patrão, as faxineiras e os clientes que estavam lá. Queria sair correndo, ir para casa escrever e tomar banho. Uns 30 banhos. No meu passo apertado, o patrão levantou a voz:

    “Ô Zé, não vai ajudar a limpar não?”

    “Limpa você................. (ah, dane-se) ................. porra!!!”



    Sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005


    Cinzas


    Janaína caminha pela praia, pedaços de fantasias ficando pelo meio do caminho: chapéu, casamento, sapatilha, felicidade, saia de lantejoulas, orgulho, colar, auto-estima... o sol despontava na praia, convidando os foliões a voltar para casa, convocando para o retorno ao lugar comum.

    Ela cruzava com pessoas caídas pelo chão, dormindo nas guias das calçadas, sonhando com lugares onde o carnaval não tem fim. Pensa como é possível ainda estar de pé; certamente bebeu o mesmo que eles. Olha para os casais abraçados, saindo de bailes e lança um olhar triste.

    A carreira musical acabou meses depois que as rádios falavam que Janaína e Pierre eram a “sensação da música romântica”: formaram uma dupla, movida a músicas açucaradas de novela, quando tinham 15 anos. Colocaram um hit nas paradas (“Levo Você Comigo”) e a coreografia romântica emplacou: namoraram e casaram. Aí, Pierre cansou da coreografia ditada pelo casamento e Janaína ficou sozinha no apartamento do Leblon.

    Janaína olha para a procissão de garis que sobre a rua, ditando o ritmo da normalidade, que voltava ao Rio depois de cinco dias de festa. Ouve um deles falar da atriz de TV que desfilou na escola, desfilando novos seios e velhos clichês. Lembra de como era antes, dos flashs, da atenção que o mundo lhe dava, e de como tudo isso sumiu, varrido rua abaixo.

    Passou os primeiros seis meses do desquite em depressão, rasgando fotos e memórias. Os dias passavam mais devagar, enchendo o apartamento de más lembranças. O trabalho como assistente na produtora foi o único luxo que sobrou da carreira, e foi a única porta que abriu frente à menção de seu nome.

    Sentia muita falta do tempo em que estavam juntos; melhor, não conseguia se lembrar de com era não estar junto com Pierre. A dupla engrenou aos 14 anos, mas cantavam em programas de calouros em rádio e TV desde os 10. Pierre se foi porque queria saber como era não estar com ela. E gostou.

    Não se lembrava da última vez que celebrou o carnaval, e a insistência dos colegas a fez vestir a fantasia de colombina. Porém, ao chegar em casa, tira a fantasia de Colombina e se espanta: tudo que via era um pierrô.

    “Um Pierrô apaixonado
    Que vivia só cantando
    Por causa de uma Colombina
    Acabou chorando,
    Acabou chorando

    A Colombina entrou no botequim
    Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
    Dizendo: Pierrô cacete
    Vai tomar sorvete
    Com o Arlequim

    Um grande amor
    Tem sempre um triste fim
    Com o Pierrô aconteceu assim
    Levando esse grande chute
    Foi tomar vermute
    Com amendoim”

    (Pierrô Apaixonado - Noel Rosa e Heitor dos Prazeres / 1936)

    Sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005


    Obs: Por um erro de publicação, o texto a seguir permaneceu por quase uma semana sem o último parágrafo.


    Tap-tap

    Tap, tap, tap, tap, tap...

    São 44 só hoje, ela deve estar muito ocupada. Pelo menos, é o que Augusto pensa, já que não pode sair e ver. Aliás, não pode sair para nada. O quarto tem 4x4 metros, suficiente para uma cama, armário e saída pra um banheiro. Mais nada.

    Nas paredes, nenhuma foto, nenhuma lembrança de ninguém. Augusto queria fotos da sua família, mas Maria Eduarda dizia que pendurar coisas na parede estragaria a pintura. Ele sempre foi uma pessoa religiosa, ainda mais depois que Marta morreu, mas um crucifixo na parede estava fora de cogitação; mais uma vez, Maria Eduarda: “sem chance, não gosto de ficar pendurando essas coisas, parece que estou ajudando a matar o homem”.

    Augusto não entendia bem o sentido do que ela falou, mas até aí não entendia nenhuma atitude da sobrinha. Inclusive o quarto. Ele conhecia cada rachadura, cada mancha na parede, cada mão de tinta mal colocada. Quando seu mundo se resolve a 4 metros quadrados, você o conhece mesmo que não queira.

    Tap, tap, tap, tap...

    45, 46, 47....52. Isso, 52 hoje. 312 nessa semana...

    Sentia um certo orgulho ao calcular. Com 80 anos, poucos são os que podem fazê-lo com tamanha precisão. Começou a contar os passos da sobrinha e sua filha na escada há 1 ano atrás, quando a solidão começou a apertar. No começo era difícil, mas com a prática e a reclusão, acabou se tornando um especialista.

    Às vezes, a sobrinha dá passos rápidos: taptaptaptaptaptap, quando quer vir tirar roupa do varal por causa da chuva. Às vezes, são passos lentos: tap....tap....tap....tap, quando está subindo e seu peso a deixa cansada. Ela já era uma moça grande, mas desde que resolveu viver da aposentadoria de Augusto, largou o emprego e passou a fazer artesanatos, em casa e comendo. Muito.

    O real desafio era quando a filha de Maria Eduarda descia as escadas junto: tap-tap, tap-tap...passos conjuntos, Augusto tomava cuidado para não contar mais passos do que devia, para não perder a conta. Pelo menos eram somente elas duas na casa, o marido de Maria Eduarda saiu de casa bem antes de Augusto ser chamado de “estorvo” e ser trancado no quarto.

    Tap, tap, tap, tap...

    60. O ar dentro do quarto era velho, pesado; se a tristeza tivesse um odor característico, Augusto tinha certeza que seria aquele. Não se lembrava mais como era o ar fresco: as pequenas janelas perto do teto traziam uma resga de luz, e quando ele realmente queria ver o sol, tinha que subir na cama e colocar os olhos entre as pequenas janelas.

    Como estava na hora do almoço, os passos se tornaram mais altos até perto da porta. Augusto já sabia da rotina: deitado na cama, nem se levantou enquanto Maria Eduarda abria uma frestada porta e colocava o prato no chão, trancando logo em seguida. O almoço estava bom, prato cheio de coisas boas. Mais do que uma autêntica preocupação da sobrinha, era uma maneira dela garantir seu “investimento”.

    Quando Augusto ficava doente e precisava de remédios, Maria Eduarda (pelo mesmo motivo) comprava-lhe os remédios, mas ela descontava na comida, tornando-a mais escassa quando ele melhorava. Nos fins de semana em que a sobrinha e menina iam para a praia, Maria Eduarda deixava-lhe um Tupperware com sanduíches e uma garrafa de chá.

    Sentia falta de ter uma família que se importasse com ele; porém, não pensava mal da sobrinha, pelo menos era alguém que cuidava dele, em um mundo onde não seria querido por ninguém mais. Podia ser pior, pensava Augusto, mais para se convencer do que para se confortar.

    Taptaptaptaptap...

    61, 62...ou 64? Eram 60 antes de começar? E agora? Ela já subiu a escada. Augusto, perdido nas contas, não acompanhou. Teria que começar do zero, tudo de novo, como pôde errar? Velho idiota, não presta para nada, merece tudo que está recebendo. Deitou na cama, e chorou, chorou, chorou mais lágrimas do que podia contar.


    Notas: Reconheço que este conto não é um dos meus melhores esforços, e é parte de um problema que me toma muito: eu tenho pena dos meus personagens, e por isso quer largá-los logo, exorcizá-los. Acostumei com o fato de que nem sempre os finais são felizes. Então, às vezes, escrevo com vistas a terminar logo e trancar a porta atrás de mim, o que nem sempre traz grandes resultados. Nem sempre a minha criatividade me leva para lugares bonitos e pessoas felizes.

    A premissa desse conto é parcialmente baseada em uma história real (quais premissas não são?), e decidi a princípio que alteraria a situação de um velho trancado no quarto pra um preso em uma cela do DOPS nos anos 70, contando os passos de seu torturador pela escada; a intenção era proteger pessoas e fatos. Porém, mantive a premissa, pelo fato de não existir prisão pior que aquela que alguns de nós construímos ao redor da velhice.