Só pra passar tempo
Dionísio olha pra o açougue. É tudo que resta do seu pai, e agora nem isso sobreviveu ao tempo. Queria ter feito mais, talvez se modernizado, ter feito do local uma “boutique de carnes”, como viu em Higienópolis certa vez. Mas sabe-se lá, talvez Dionísio quis manter do jeito que recebeu para lembrar do pai; não dependia do açougue para viver, então não se esforçara para mudar. Começou a fechar a porta do vazio estabelecimento pela última vez.
Antes de terminar de fechar, do outro lado da rua, seus olhos seguem Mara empurrando o carrinho rua abaixo. Ela gostaria de saber quando o marido providenciaria aquela au pair que prometeu desde que ela concordara em engravidar. Ela casou-se para ter uma vida de princesa, não para acordar dezenas de vezes na madrugada, limpar cocô, xixi e vômito verde.
Na pressa, Mara quase passa por cima de Tonico, que precisava bolar um texto bacana para o anúncio do banco. Uma chuva de chavões (além de rimas e aliterações) corria em sua cabeça, desde idéias bestas como “poupe-se de preocupações, poupe no Banco Patrimonial” até lampejos interrompidos por mulheres correndo com carrinhos de bebê e por gente como o maconheiro do outro lado da rua.
Toninho viu Mariano fumando, completamente exposto. Mariano cagava e andava pro mundo, sentado na calçada e viajando. A última coisa que viu antes do policial lhe dar o primeiro safanão foi o moleque com cara de tarado no ponto de ônibus.
Juliano avaliava, olhos famintos, pensando “essa eu comia fácil, essa até dá caldo, essa nem fodendo, CACETE!!! COMIA COM GOSTO!!!, essa é feia mas a bunda é boa”, e por aí vai. Uma adolescência de hormônios queimava dentro dele, moleque espinhento que quase comprova a crença popular sobre meninos de 15 anos e os banheiros de suas casas.
A feia de bunda boa subia a rua, sem pensar nada que valesse a pena escrever, sacolejando o espaçoso porta-malas na porta do boteco onde Firmino tomava o terceiro goró do dia. Pensava no dia anterior, o dia cinzento em que recebeu o bilhete azul e ficou roxo de raiva e depois vermelho de vergonha quando voltou a si. Tome mais uma amarelinha para esquecer. Tonto como estava, quase confundiu o menino que subia a rua, passando correndo na porta do boteco, com algum parente: tinha os mesmos traços. Não estava bêbado o suficiente para falar com o moleque, e virou para pedir mais uma.
O moleque um dia teve nome, mas não lembra mais. Usa o nome de guerra que o coxinha da PM lhe deu: Meia Perna. Arrastando a dita cuja rua acima, não sabe quem é seu pai ou sua mãe. Mas tem um cano. 38. Abraçava-o contra o corpo, por baixo da roupa, sentindo o frio do revólver ainda virgem.
Para chegar aqui, passou pela maluca com o carrinho de bebê, que descia a rua e atravessou a rua só para não cruzar com Meia Perna. Cruzou com o tio completamente distraído, pensando na vida (e em slogans, mas Meia Perna não sabia disso), pedindo para ser assaltado; só não foi porque Meia Perna viu o gambé dando porrada num noinha. Apertou o passo para não ser notado e viu um velho chapado de cana querendo falar com ele. Desviou, não tinha tempo para perder, era hora de roubar o coroa que tem o açougue lá na esquina. Ia limpar o caixa, levar umas carnes pra cambada lá da Sé, fazendo um churrasco debaixo da ponte para comemorar. E se o folgado se metesse a besta, ia levar chumbo. Meia Perna viu a bunduda lá na frente, entrando no açougue. Diminuiu o passo para dar tempo dela sair. Se não saísse antes dele chegar e se metesse a besta também...
Rosângela, agora sim pensando algo que valha a pena escrever, chegou na porta do açougue; ia convidar Dionísio para jantar. Acha que demorou demais para fazer um movimento para cima dele, mas pensou: “dane-se, é ele que eu quero”, e foi lá. Dionísio topou, terminou de fechar a porta e saiu de mãos dadas com Rosângela, atravessando a rua até o prédio onde ela mora.
Se Rosângela soubesse que era só convidar, tinha tomado coragem uns anos antes.
Meia Perna botou a culpa na porra da perna que não o deixou chegar no açougue a tempo.
Firmino desistiu de falar com o moleque e pediu mais uma; mas que ele era a sua cara, isso era.
Juliano botou a pasta da escola na frente das calças, para esconder o volume, e continuou secando o mulheril.
O PM enfim cansou de dar safanões em Mariano e o levou para a viatura.
Toninho não bolou nada para o Banco Patrimonial, e ainda foi atropelado por um motoboy ao atravessar a rua distraído. Mas passa bem.
Mara chegou em casa, xingou o marido pelo telefone e foi trocar o bebê de novo.
Dionísio longe do pai e do açougue, respirou fundo e começou a viver.
E é isso.